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Roi... Conto novo, né? |6

'O início de tudo ou

Para o ventilador com carinho'

por Crístophem Nóbrega



 

– No início de tudo, faço uma prece... Não chega a ser uma oração fervorosa, com joelhos prostrados e velas acesas, é em verdade, mais do que voltar a face para o mistério do divino, um silencioso pedido a mim mesmo; ornado com todas as cores que puder roubar; das pessoas, dos sonhos, do mundo inteiro.

Peço ao meu outro eu; o lado sem amarras ou prisões, que me seja permitido narrar com exatidão os acontecimentos. Sem cometer o crime de diminuir ou aumentar, aquilo que simplesmente foi. Pois o uso das palavras requer cuidado, um segundo basta para estragar tudo. Aquele que se esquece desta regra mater, pode ser vítima das próprias figuras de linguagem. Assim, para passear pelas ruas dos estranhos lugares comuns; se faz necessário uma bússola, um norteamento simbólico. Caso não, tudo não passará de uma manhã que acontece enfadonha, para depois ir desemborcar em uma tarde insossa e uma noite infame.

Rogo também que meus cabelos desgrenhados sejam perdoados, minhas unhas ruídas sejam relevadas e ainda que as minhas olheiras... Ah! As minhas olheiras... Deixe que elas mesmas contem sua história, basta apenas uma olhadela por menor que seja, verás que aqui habita alguém que é tolo e louco. Talvez por este motivo, tenha havido a conexão básica, necessária para escrever a história de Jocasto.

Você que agora me lê, faça-me o obséquio de esperar; sei que enrolo e que finjo começar, para depois dar em nada. Contudo não acredite nos subterfúgios que uso, isto não foi por mim despercebido, em verdade foi planejado. Demoro, pois tenho medo, receio não ter em mim as palavras certas, o exato e perfeito vocabulário para ser utilizado nos momentos, desta que é uma cruel narrativa.

Protelar é também uma forma de seguir em frente, na qual não reside o perigo de avançar, muito menos a ameaça de retroceder. Fica apenas a sensação de falsa liberdade, na qual, o autor do ato; se for perceptivo o bastante. Encontra abrigo.

Tudo teve seu começo com o desaparecimento do sol e seus calorosos raios. A noite é fértil, pois guarda no ventre o filho da insônia, apadrinhado pelo Silêncio. Resta ainda, saber que tudo aquilo que se contará, aconteceu com Jocasto, mas poderia ter sido com qualquer um – inclusive você e eu.

O inverno chegara, trazendo consigo os dias frios, as noites mais longas, e a escuridão causticante. Os domingos podem ser monótonos, mas eles se tornam venenosos, na presença da chuva e excruciantes se houver solidão. Jocasto, abraçado a si mesmo, saía do alcance dos longos dedos da rua, voltando sua visão para longe da janela, buscando fixar a atenção na televisão à frente:

Tentador não acha?

Jocasto guardou silêncio... Continuou sentado; pés apoiados na banqueta azul-celeste e nas mãos um controle remoto. Com o qual pulava de canais, trocando-os com a velocidade de seu tédio, nos intervalos daquilo que "assistia".

Mas veja só... Não acredito que vai recomeçar com essa história de fingir...

Ele mordeu o lábio, apertou o objeto de plástico, colocou um pé sobre o outro; balançando inquieto.

Então tudo bem, se você prefere assim... Se deseja mentir para si, deixarei que veja o seu filme.

Era uma comédia romântica, um épico de luta pelos direitos das mulheres ou um programa de vendas? Já estava há vinte minutos ali, sentado na poltrona. Cruzava os, tremeluzia a perna direita; sempre inquieta. Mordia a mucosa interna das bochechas, para ficar com nojo dessa autofagia e cuspir as carnosidades esbranquiçadas.

Acho que a chuva da manhã já passou, provavelmente a noite será muito bonita, porque você não sai um pouco?

Forçou uma mordida em algo inexistente, contraindo o maxilar, como se estivesse pronto para rasgar tecidos e ossos. O seu pé parou com o insistente tremor, para logo em seguida, recomeçar de forma mais rápida, quase parecia agir por sua própria vontade. Ele sabia que era mentira, que a chuva caia forte e continuaria assim por muito tempo, era tudo um pretexto para olhar pela janela. Já sabia a paisagem, a trazia em pictografia, pontilhada no íntimo das pálpebras: Prédios, luzes, outras janelas, outras pessoas, algumas lixeiras esquecidas, carros em seu trafegar, talvez um passante mais afoito, carregando a sua ilha flutuante particular; um guarda-chuva.

Décimo primeiro andar... Alto, não é? Imagine como seria cuspir daqui de cima... Ou quem sabe jogar algo... Um ovo, por exemplo.

Jocasto levantou, não fazia mal se não estava no comercial, não se pode dizer que havia real interesse. Foi se encher de água, tomou um copo inteiro, mesmo sem sede. Lá era mais seguro, afinal da cozinha não podia ver a rua, apenas trechos de um céu carrancudo, que em teimosia grandiosa não silenciava; havia trovões... Sempre tivera pavor, na infância acreditava que os trovões eram fruto de um Deus zangado, gritando com o mundo.

Estamos realmente de péssimo humor hoje, não é? Você sabe que mais cedo ou mais tarde irá falar comigo... Não faz mal, eu não tenho pressa, sei esperar.

Sim, Jocasto sabia – ele sempre cedia. Poderia passar horas ignorando, mas em algum momento iria sucumbir; nunca passara mais do que dois dias sem responder. E após isto não havia saída, era resignar se e aceitar a sina. Porém como um masoquista não declarado, conhecia o processo; anteveria a culpa danosa pela qual seria acometido. Essa lhe amaciaria as carnes, como um martelo de madeira, espancando continuamente o seu orgulho...

Talvez tenha sido por isto, por reconhecer a própria fraqueza e pela culpa que o aguardava... Ele ainda na cozinha ligou o liquidificador, pondo dentro meia dúzia de colheres de chá, acionou a batedeira, foi até a área de serviço e colocou a máquina de lavar roupas para funcionar. Criou toda uma gama de barulho; sinfonia de pé quebrado que lhe abafava os ouvidos. A luz do televisor refletia-se no chão da cozinha, mas era o som dela que possuía melhor serventia. Ele quase podia ter paz, a porta da geladeira entreaberta, o aconchego dos seus eletrodomésticos, era quase uma plenitude roubada.

Meu caro, se continuar assim, você irá ensurdecer. Vamos, desligue essas coisas, não quero ver você enganar-se assim, sabe que não irei embora... Já tentamos tudo não foi? Até aquelas pilulazinhas... Nada nos separou... Não seja assim tão rabugento...

Agora chegara a ousadia de sussurros ao pé do ouvido, como um casal de apaixonados.

Fale comigo... Só um pouquinho... Será um segredinho só nosso...

Profundamente irritado consigo mesmo, ele correu para o quarto, havia ainda uma última tábua de salvação – o chuveiro! Noite passada, havia conseguido tão bom resultado, horas sobre a água gelada produziam uma dormência reconfortante. Ontem até conseguira dormir antes do ruflar das asas tingidas de cobre. Fato inédito desde que "Ele" chegara.

Hoje, porém parecia tarde demais para esse ato, afinal Jocasto estava cansado. Trazia consigo uma mente ressequida pelo esforço constante de evitá-lo; barba por fazer, dentes por escovar, os finais de semana era uma tortura! Na segunda voltava para as rotinas diárias como uma criatura em semivida.

Caminhou os menos de dez metros de separação entre a sala e o quarto, perdendo pelo corredor as peças de roupa que lhe cobriam a nudez pudica. Notou com certa distância de percepção, despir algo além de tecidos, enquanto agradecia em voz baixa, seu mau hábito de esquecer a porta do banheiro aberta. Sabia com certeza, sem qualquer razão na qual se amparar, da atual impossibilidade de usar uma maçaneta. Hoje ele não abriria porta alguma, nem tão pouco fecharia, estava a mercê das eventualidades que fabricam o intermédio, nem lá, muito menos cá...

Já dentro do box transparente do banheiro, trajando apenas velhas meias de algodão branco; encardidas pelo tempo e com o solado enegrecido pela poeira da casa, esticou a mão para a torneira de passagem... Apenas as passagens entremeadas lhe seriam úteis.

– E se não houver água? O que irá fazer? Você pagou a conta? Consegue lembrar?

Um gemido... Um rosnado... Um grito! Dois ou três gritos! Socava a parede com o punho esquerdo, enquanto o direito ainda estava em suspensão, sem conseguir libertar a água.

Tenha calma, apenas quero que considere todas as possibilidades. Um banho pode ser útil..., mas antes tire as meias, parece um louco; tomar banho de meias, onde já se viu!

Já estava com o pé esquerdo suspenso, quando cristalizou no ato de despi-lo, o outro apoiado no tapete ainda amparado pela felpuda proteção. Jocasto imóvel, nu e recostado no ar, buscando equilíbrio. Devo dizer que neste momento ele quase riu: E-QUI-LI-BRI-O, soletrou devagar, era o seu tesouro escondido. A motivação de sua busca, o comprimido arredondado que finalmente surtiria efeito.

– Você tem razão, um banho pode ser útil...

Pronto! Ele havia cedido... Daquele ponto em diante não estava mais no controle, quando retirou a meia do pé esquerdo Jocasto já sabia que iria ceder. Ainda tentou resistir, mas não possuía em sua mente uma gota que fosse de força de vontade.

Completamente nu caminhou pelo apartamento, reinvocando o silêncio.

Isso... Assim está bem melhor, não é?

– Sim...

Que tal uma bebida?

A silhueta insinuante de sua rigidez; surgida diante do ato de tocar-se. Os pelos negros, levemente cacheados, agora estavam escorridos ao corpo, imprimindo em sua pele os veios abertos pela água quente. – Sim, a conta havia sido paga. O perfume sem sutilezas do alvejante esbranquiçado escorrendo pelo ralo, após descer pelo queixo e posteriormente por todo corpo dele, afinal ele não conseguia engolir tudo... Escorregou pela parede, a pele das costas e nádegas produzindo um som de chiado agudo – quase como um grito. Ficou olhando uma mancha oval de infiltração no espaço da parede onde se encontrava a torneira de passagem do chuveiro. Tudo existia em simultânea lerdeza enquanto lá longe, ou ao menos parecia ser distante, alguém assobiava uma Chanson d'amour:

“– La vie em rose...”.


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