'Você conhece a magia?'
por M. E. Paschoal
— Você conhece a magia? — perguntou a chama.
— Não. É algo ou alguém? — respondeu a gota.
— É claro que é alguém — proclamou o ar. — Se faz esse tipo de pergunta é
porque nunca a conheceu.
— Talvez você tenha conhecido. Mas não se lembra — interpôs-se a rocha.
— E por que eu deveria conhecê-la? — questionou a gota.
— Por quê?! — O ar estava indignado.
— Porque permanecer na ignorância, alheia à magia, seria uma vida sem sentido
para você, gota. Para todos nós, em verdade. — A chama era sempre muito eloquente e
incisiva.
— De fato — respondeu a rocha.
Gota se sentia muito perdida e sem forma, quando a chama, a rocha e o ar
iniciavam essas conversas absurdas. Por que tinha que ser a manipulável? Por que não
podia ser esclarecida como a chama?
— Podemos falar de outra coisa? Não gosto de discutir assuntos que não
domino.
— Oh, mas isso não é uma discussão, gota — tornou a chama.
— Magia não está aberta para discussões. É algo inquestionável. — O ar, na
maioria das vezes, era chato e presunçoso. Gota revirou os olhos.
— Talvez esteja, ar. Mas somente para aqueles que a conhecem — concluiu a
rocha.
— Se eu não a conheço é porque não preciso ou porque ela não quer que
sejamos apresentados. Fim de pa—
— Não continue essa linha de raciocínio tola, gota. — Chama era enérgica.
— Se seu conhecimento é pouco deve, sim, se colocar na posição de aprendiz.
Não seja arrogante. — Ar era pedante.
— Diga-me, gota, estaria disposta a ouvir uma história? — Rocha era receptiva.
Não era que gota era arrogante. Era confusa e instável. Sentia-se subjugada
quando falavam com ela, tinha a impressão de que sempre tentavam moldar sua
identidade, impondo-lhe como deveria pensar, como deveria ser, como deveria agir. Era
frustrante. Odiava ter que ceder. Porém, ouvir uma história parecia inofensivo. Poderia
se entreter.
— Está bem. Mas quem irá contar?
— Chama, é claro. — O ar não parecia satisfeito.
— Chama, pois sabe ser objetiva e um tanto menos prolixa que o ar — disse a
rocha.
— Isso é verdade — disse a gota.
— Shh, silêncio agora, criança — disse a chama. Gota estranhou que ela
colocasse seus óculos de lentes grossas, se não iria ler coisa alguma. Mas chama era
muito dona de si e gostava de se expressar das mais variadas formas. — Todos prontos?
— Estamos — proclamou a rocha.
O escuro se faz presente onde os quatro irmãos se encontram. Conhecem a luz e
a vida, mas vivem apartados dos fluxos da realidade. A luz da chama se reflete na gota e
na rocha. Sabe-se que o ar está presente, pois a chama continua a bruxulear, e isso não
aconteceria se o ar decidisse ir embora — o que ele jamais faria.
— Magia é nossa criadora. Isto é, algo que poderíamos chamar de mãe. Mas
magia também foi criada a partir de nós quatro, nasceu de nosso âmago, dada à luz por
um parto muito difícil, eu me lembro. Assim como nós nascemos de um parto difícil,
magia sofreu muito para nos dar à luz, ela nunca irá esquecer. Magia nos gera e nós
geramos magia. Nunca saberemos quem foi o instante primeiro de nascimento, nós ou
magia. Talvez o instante primeiro sequer exista. Nascemos a todo instante… Mas nunca
morremos. Esse é o maior mistério de todos. Magia está em nós, como se nos
pertencesse. E nós estamos em magia, como se pertencêssemos a ela.
— Eu gosto da ideia de progenitora e progenitores — disse a gota.
— Ora, você usando palavras difíceis, gota. Quem diria — disse o ar, ácido.
— Continuando — disse a chama, encarando-os por cima dos óculos. — Magia
nos utiliza para conjurar cada aresta do infinito e cada segundo da eternidade. E nós
utilizamos a magia para sustentar o infinito e a eternidade. Origem e finalidade.
Finalidade e origem. Nós e magia somos esses dois fluxos, coexistimos ao mesmo
tempo, mas não em linhas paralelas, tampouco em linhas cruzadas. Somos a mesma
linha de existência, como dois em um. Mas cada parte do dois é uma linha única de
existência.
— Talvez não seja uma linha, chama. Talvez seja um círculo — pontuou a
rocha.
— Você pode estar certa, rocha. Um círculo é uma linha que se ondulou e ligou
suas duas pontas, uma na outra. Um novo sentido dentro de um sentido. Um novo
sentido que é, na verdade, idêntico ao anterior.
— Compreendo — disse a gota.
— Deveras? — desconfiou o ar.
Mas subitamente a gota caiu no chão, como se despencasse de uma nuvem.
Ploft. E os três irmãos suspiraram, enfastiados.
— Mais uma vez — disse o ar.
— Minha paciência está se esgotando, devo confessar — disse a chama.
— Infelizmente não podemos culpá-la por ser tão instável. Não podemos
interromper seu fluxo, que se renova a cada instante. A consciência da gota é diferente
da nossa. Ela nasceu, nasce e nascerá assim. Mutável.
— Nascemos a cada instante, mas nossa consciência, não. Agora, nossa irmã
gota, nunca é a mesma.
De algum lugar acima, uma gotinha surgiu diante da chama, do ar e da rocha. Já
muito desperta, ciente de uma verdade ou outra… Mas ignorando a mais importante de
todas.
Então chama, que não gostava de perder tempo, perguntou:
— Você conhece a magia?