'Estação'
por Beatriz Faria
E então o vagão devagarzinho deixa a cidade e começamos a andar sob os trilhos, ouvindo um rugido pelo atrito de vez em quando. Lentamente temos a visão privilegiada das suturas daquele lugar, suas cicatrizes e o que mais pode ser escondido entre peças metálicas. Passado, lembranças e memórias apagadas.
Uma moça de vestido longo e colorido se apresenta no meio de todos e mostra seu trabalho, lápis com bonecos de crochê na ponta, diz que tem filhos pra cuidar, mostra, vende, pede uns trocados. Algumas pessoas elogiam, outras viram a cara. Um garoto caminha até o meio e entrega um punho fechado de moedas que a moça agradece com um "Deus te abençoe", mas não leva nenhum lápis, apenas volta para o seu lugar. Um senhor no fundo se apoia como consegue, quase caindo, com as duas mãos para não cair com o solavanco, aqui dentro aqueles moleques que tiram sarro de toda a situação não parecem perceber o significado das cadeiras reservadas.
Tem uma criança também, que, por sinal, parece muito com você. Ela deve ter uns dois ou três anos e fica quietinha ao lado do homem de óculos escuros que lê o jornal, a garotinha lança os olhos ao redor repetidamente como se buscasse alguma distração. Olhando mais uma vez, a criança se parece muito, tem a cor dos seus olhos, o molde do seu cabelo, o traço de seu sorriso e a sua cara de bravo.
Oh.
Então o vagão chega na estação e você e sua filha descem, provavelmente discutem o que jantarão com a mãe. Vocês se levantam e partem, prontos para seguir em frente, prontos para continuar o trajeto, seja lá qual for. O meu vagão deixa vocês até que de longe tudo que posso ver são duas miragens. Sua família se reúne, fica junta, e unida pelo cheiro da ceia, de comida caseira feita em pleno dezembro, enquanto eu ainda espero pela hora em que terei de descer do vagão.
Texto originalmente publicado em priscillacastro.com.br